PL 4.497/2024 suspende georreferenciamento e fragiliza regularização fundiária
A Câmara dos Deputados aprovou em maio de 2024 o Projeto de Lei nº 4.497/2024, que altera as regras para a regularização de imóveis rurais em terras públicas. O dispositivo principal, o Artigo 3º, suspende até 2028 a obrigatoriedade do georreferenciamento dessas áreas, com isenção indefinida para propriedades de até quatro módulos fiscais. Parlamentares e órgãos técnicos alertam para o risco de aumento da grilagem, conflitos agrários e invasão de terras públicas caso o texto seja sancionado sem ajustes no Senado Federal.
Retrocesso técnico e riscos à governança fundiária
A suspensão do georreferenciamento representada pelo Art. 3º do PL 4.497/2024 configura um retrocesso técnico, desconsiderando o papel fundamental dessa ferramenta na governança fundiária e na segurança jurídica. Atualmente, mais de 22 mil profissionais estão credenciados pelo Incra para realizar medições precisas, e há uma tabela referencial de preços que tem garantido adesão voluntária em diversos estados. A obrigatoriedade até 2028 garantida no texto impede o aproveitamento desse aparato técnico e pode comprometer a clareza sobre limites de propriedade.
A substituição de certidões por simples declarações dos interessados, aliada ao arquivamento automático de processos antigos, amplia as vulnerabilidades do sistema fundiário. Sem a exigência de documentação robusta, cresce o risco de fraudes e usurpação de áreas, ignorando direitos adquiridos e litígios pendentes. Além disso, a delegação ao Congresso Nacional da análise de registros de áreas superiores a 2.500 hectares, sem comprovação da função social ou regularidade ambiental, fragiliza a governança fundiária, reduzindo o caráter técnico das decisões.
O texto do PL também autoriza a ratificação de áreas já regularizadas pelo Incra, criando o chamado “andar fundiário” e multiplicando conflitos sobre a mesma gleba. Esse mecanismo é capaz de gerar sobreposição de títulos de propriedade em locais como os terrenos da Braviaco, no Paraná, onde já existem registros consolidados. A possibilidade de múltiplas regularizações para uma única área intensifica disputas judiciais e agrava a insegurança na condução das políticas de reforma agrária.
Impactos em territórios especiais e direitos indígenas
O projeto de lei afronta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ao permitir a ratificação de registros sobrepostos a terras indígenas mesmo durante processos de demarcação. Essa medida viola o princípio dos direitos originários consagrado na Constituição Federal e na Convenção nº 169 da OIT, colocando em risco a integridade das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. A aprovação do PL nesse formato pode institucionalizar a grilagem e legitimar ocupações irregulares.
Além das terras indígenas, o texto não faz distinção para as faixas de fronteira — áreas de até 150 km ao longo das divisas terrestres do Brasil, consideradas de segurança nacional. A Lei nº 4.947/1966 atribui ao Poder Executivo federal a autoridade para ratificar registros nessas zonas, cuja regularização fundiária é estratégica para o desenvolvimento regional e para a manutenção da soberania nacional. A flexibilização prevista no PL ignora essa especificidade e pode comprometer a fiscalização em regiões sensíveis.
A Constituição Federal estabelece que toda propriedade rural deve cumprir sua função social, o que exige aproveitamento racional e adequado, uso sustentável dos recursos naturais e preservação ambiental. Ao delegar ao Congresso Nacional a análise de áreas acima de 2.500 hectares sem exigir a comprovação desses requisitos, o PL fragiliza o princípio da função social da propriedade. Sem essa garantia, a política fundiária corre o risco de privilegiar interesses privados em detrimento do bem coletivo e da proteção ambiental.
Recomendações para ajustes no Senado
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apontam a necessidade de rejeitar o Art. 3º ou, alternativamente, adotar um cronograma escalonado para o georreferenciamento de imóveis rurais. As entidades também recomendam que processos demarcatórios indígenas sejam considerados na análise de registros fundiários e que a participação técnica do Incra e da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) seja mantida em todas as etapas de avaliação dominial e socioambiental.
As recomendações visam mitigar os riscos de grilagem, conflitos agrários e degradação ambiental decorrentes da flexibilização das regras de regularização. Ao preservar a exigência de georreferenciamento e a análise técnica, pretende-se garantir segurança jurídica aos produtores rurais, proteger os direitos indígenas e assegurar a gestão responsável das terras públicas. Essas medidas contribuiriam para evitar retrocessos institucionais e fortalecer a transparência no processo fundiário.
Diante dos riscos identificados, o MDA e o Incra defendem que o Senado Federal promova um debate aprofundado sobre o PL 4.497/2024. A urgência das alterações propostas reflete a necessidade de proteger o patrimônio público, assegurar a função social da propriedade e evitar a legitimação de ocupações irregulares. O resultado desse debate deverá influenciar diretamente a estabilidade jurídica e ambiental no campo.
A aprovação do PL 4.497/2024 sem as devidas modificações pode levar a um retrocesso na política fundiária brasileira, aumentando a grilagem, os conflitos agrários e a degradação ambiental. A suspensão do georreferenciamento, a permissão de ratificação de registros sobrepostos a terras indígenas e a fragilização dos critérios de função social colocam em xeque a segurança jurídica no campo. Cabe ao Senado equilibrar a urgência da regularização de imóveis rurais com a preservação de direitos e garantias constitucionais.
O debate em plenário deverá considerar não apenas o aspecto técnico, mas também os impactos sociais e ambientais do projeto. A adoção de um cronograma escalonado para o georreferenciamento, o respeito aos processos de demarcação indígena e a manutenção da análise técnica do Incra e da SPU são passos essenciais para assegurar uma política fundiária justa e sustentável. Sem esses ajustes, o Brasil corre o risco de institucionalizar práticas de grilagem e de comprometer a gestão responsável de suas terras públicas.
A expectativa é de que o Senado Federal incorpore as recomendações do MDA e do Incra e promova emendas que preservem a função social, a segurança jurídica e os direitos dos povos indígenas. Somente com um texto equilibrado será possível avançar na regularização fundiária, promovendo desenvolvimento rural e respeitando as múltiplas dimensões do uso da terra no país.