Da Cabaça para o Mundo: A Revolução do Queijo Artesanal Mineiro
Introdução
No coração das montanhas de Minas Gerais, entre vales e rios que cortam o Jequitinhonha, uma pequena revolução silenciosa acaba de acontecer. O anúncio da regulamentação do Queijo Cabacinha, feito pelo governador Romeu Zema, não é apenas uma formalidade burocrática – é um marco histórico que transforma a vida de centenas de famílias e resguarda um patrimônio cultural centenário. Em tempos onde o artesanal é frequentemente sufocado pelo industrial, esta medida representa um sopro de esperança e reconhecimento para aqueles que, com mãos hábeis e conhecimento passado de geração em geração, moldam não apenas queijo, mas a própria identidade mineira.
O que poderia parecer apenas mais um regulamento técnico é, na verdade, a abertura de portas que estiveram trancadas por décadas. Para os 160 produtores do Vale do Jequitinhonha, a Portaria n° 2.377 do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) significa a possibilidade de transformar um conhecimento ancestral em dignidade e sustento, levando o Queijo Cabacinha, agora reconhecido como patrimônio cultural e imaterial de Minas Gerais, das mesas locais para os quatro cantos do país e, quem sabe, do mundo.
Por trás de cada peça em formato de cabaça, moldada pacientemente à mão, existe uma história de resistência, tradição e amor pela terra. A regulamentação técnica não apenas estabelece padrões de qualidade, mas reconhece e valoriza o saber-fazer que resistiu ao tempo, às adversidades econômicas e à modernização desenfreada. Esta é uma narrativa de como políticas públicas bem direcionadas podem preservar culturas, fortalecer economias locais e, acima de tudo, devolver o protagonismo àqueles que sempre foram os verdadeiros guardiões do patrimônio alimentar brasileiro.
A Legitimação de um Legado Ancestral
O Queijo Cabacinha carrega em sua forma única não apenas o leite cru transformado em alimento, mas também 80 anos de história, técnica e persistência. A regulamentação técnica de identidade e qualidade (RTIQ) agora estabelecida não veio como uma imposição externa, mas como resultado de pesquisas minuciosas que envolveram instituições como a Epamig, universidades e os próprios produtores. Este processo cuidadoso garantiu que as características essenciais que tornam o Cabacinha único – desde sua massa pré-cozida até a moldagem manual em formato de cabaça – fossem preservadas enquanto se estabeleciam parâmetros sanitários modernos.
Para os moradores dos nove municípios que compõem a região produtora, este momento representa muito mais que a possibilidade de comercialização formal. É o reconhecimento oficial de que seu trabalho, muitas vezes realizado em condições desafiadoras e com recursos limitados, tem valor cultural e econômico inestimável. A agricultura familiar, responsável por mais de 90% da produção anual de 214 toneladas, passa agora a contar com a segurança jurídica necessária para investir, crescer e sonhar com novas possibilidades para seus pequenos negócios.
O que testemunhamos neste processo é a materialização de um princípio fundamental: tradição e segurança alimentar podem caminhar juntas. A regulamentação não descaracteriza o produto artesanal, mas cria as condições para que ele possa circular e ser apreciado por um público mais amplo, sem riscos à saúde do consumidor. Esta é talvez a maior vitória: provar que é possível proteger patrimônios alimentares sem engessá-los em museus ou feiras folclóricas, permitindo que continuem vivos, dinâmicos e economicamente sustentáveis.
Além da Regulamentação: Capacitação e Desenvolvimento
Com a regulamentação estabelecida, o próximo passo crucial é garantir que os produtores tenham acesso ao conhecimento necessário para implementar as boas práticas exigidas. Neste contexto, o lançamento do Curso de Capacitação Digital em Boas Práticas de Produção e Fabricação pela Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) surge como ferramenta fundamental. Disponibilizado através da plataforma Semear EAD, o curso democratiza o acesso à informação técnica, permitindo que produtores, mesmo aqueles em regiões mais remotas, possam adequar seus processos sem perder a essência artesanal que caracteriza o Queijo Cabacinha.
Esta iniciativa de capacitação reflete uma compreensão profunda de que regulamentar sem educar seria criar mais um obstáculo burocrático, em vez de uma oportunidade real de desenvolvimento. As boas práticas de higiene pessoal, manutenção adequada das instalações, controle de processos e rastreabilidade não são meros requisitos burocráticos – são garantias de que o produto final chegará com segurança e qualidade às mesas dos consumidores, fortalecendo a confiança no queijo artesanal mineiro e abrindo portas para mercados mais exigentes e rentáveis.
Mais importante ainda, a capacitação preserva a autonomia do produtor. Ao compreender os fundamentos científicos por trás das exigências sanitárias, cada queijeiro torna-se capaz de adaptar suas práticas sem comprometer a autenticidade do seu produto. Esta abordagem educativa, em vez de meramente fiscalizadora, transforma o que poderia ser percebido como um fardo regulatório em uma oportunidade de aperfeiçoamento e valorização do produto final – um equilíbrio delicado, mas fundamental para a preservação genuína das tradições alimentares.
Histórias Humanas Por Trás da Tradição Queijeira
O impacto real da regulamentação do Queijo Cabacinha é melhor compreendido quando observamos histórias como a de Renato e Adriana Rocha. Este casal, que produz cerca de 20 queijos diariamente em sua queijaria familiar, representa o rosto humano por trás das estatísticas e dos regulamentos técnicos. Ao investirem na construção de uma queijaria própria na propriedade familiar, eles apostaram não apenas em um meio de sustento, mas na continuidade de uma tradição. A alegria com que receberam a notícia da regulamentação revela o peso que a insegurança jurídica exercia sobre seus sonhos e projetos.
Para estes e outros produtores, a possibilidade de vender formalmente seus queijos significa uma transformação radical nas perspectivas de futuro. Não se trata apenas de evitar apreensões ou multas, mas de poder planejar expansões, participar de feiras e concursos gastronômicos, acessar novos mercados e, principalmente, ter orgulho público do trabalho que realizam. A regulamentação traz consigo a dignidade profissional muitas vezes negada aos produtores artesanais, frequentemente relegados à informalidade apesar da qualidade excepcional de seus produtos.
Este reconhecimento formal também fortalece os laços comunitários e o sentimento de pertencimento a uma tradição valiosa. Quando o estado reconhece oficialmente o valor cultural do Queijo Cabacinha, como fez através da Lei n° 24.379 de 2023, declara também que o conhecimento transmitido ao longo de gerações por famílias como a dos Rocha merece respeito e proteção. Esta valorização cultural é tão importante quanto a viabilização econômica, pois alimenta o orgulho e a autoestima de comunidades inteiras, especialmente em regiões historicamente marginalizadas como o Vale do Jequitinhonha.
Infraestrutura e Suporte: As Bases para o Crescimento
Reconhecendo que a regulamentação e a capacitação só podem frutificar plenamente quando acompanhadas de suporte técnico adequado, o Governo de Minas deu um passo além ao fortalecer a estrutura da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG). A entrega de veículos, notebooks e projetores à instituição, viabilizada pelo Projeto Queijo Minas Legal em parceria com o Ministério Público de Minas Gerais, representa um investimento concreto na capilaridade e eficiência da assistência técnica aos produtores. Estes recursos, aparentemente simples, fazem toda a diferença na realidade do campo, onde distâncias e isolamento frequentemente dificultam o acesso a informações técnicas atualizadas.
Os extensionistas da Emater, agora melhor equipados, tornam-se pontes fundamentais entre o conhecimento científico e o saber tradicional. Sua presença constante junto aos produtores permite identificar desafios específicos, adaptar soluções à realidade local e construir uma relação de confiança essencial para a implementação bem-sucedida das mudanças necessárias. Este acompanhamento personalizado é particularmente importante em um momento de transição, quando práticas tradicionais precisam ser ajustadas para atender aos requisitos sanitários sem perder sua autenticidade.
O financiamento desta estrutura através de recursos do Fundo Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor e do Procon-MG evidencia também uma compreensão sistêmica do ciclo produtivo. Ao investir na qualificação e no apoio técnico aos produtores, o estado não apenas promove o desenvolvimento econômico regional, mas também protege os consumidores, garantindo que o produto que chega às suas mesas seja seguro e autêntico. Esta abordagem integrada, que cuida simultaneamente dos interesses de produtores e consumidores, estabelece as bases para um crescimento sustentável e responsável da cadeia produtiva do Queijo Cabacinha.
Do Regional ao Universal: O Potencial de Expansão
O formato único de cabaça, resultado da perícia manual de seus produtores, carrega em si o potencial de se tornar um símbolo gastronômico reconhecível muito além das fronteiras mineiras. Com a herança cultural italiana do caciocavallo em seu DNA, o Queijo Cabacinha já nasce cosmopolita, capaz de dialogar com tradições queijeiras de diferentes partes do mundo enquanto mantém sua identidade única. A regulamentação abre caminho para que esta joia gastronômica mineira conquiste espaços em mercados sofisticados nacionais e internacionais, onde produtos com história, terroir e técnicas artesanais são cada vez mais valorizados.
O potencial de mercado para o Queijo Cabacinha regulamentado é vasto e praticamente inexplorado. Restaurantes de alta gastronomia, lojas especializadas em produtos gourmet, plataformas de comércio eletrônico dedicadas a alimentos artesanais e o crescente segmento de turismo gastronômico representam apenas algumas das possibilidades que se abrem. A produção anual de 214 toneladas, hoje majoritariamente consumida localmente, pode não apenas expandir-se em volume, mas principalmente em valor agregado, à medida que o produto alcança consumidores dispostos a reconhecer e remunerar adequadamente sua qualidade e significado cultural.
Mais importante ainda, esta expansão pode ocorrer de forma inclusiva e sustentável. Ao contrário de modelos de desenvolvimento que concentram renda e expulsam pequenos produtores, a regulamentação do Queijo Cabacinha cria as condições para um crescimento que preserve o protagonismo da agricultura familiar e mantenha a riqueza gerada circulando nas comunidades produtoras. Com apoio técnico adequado, estratégias de comercialização colaborativas e proteção da Indicação Geográfica, é possível construir um modelo que transforme o reconhecimento cultural em prosperidade compartilhada para a região do Vale do Jequitinhonha.
Conclusão: Um Queijo, Muitos Futuros
O que testemunhamos hoje com a regulamentação do Queijo Cabacinha vai muito além da formalização de um produto regional. Estamos diante de um exemplo concreto de como políticas públicas bem concebidas podem transformar realidades, preservando tradições sem engessá-las, valorizando saberes ancestrais enquanto abrem portas para o futuro. O pequeno queijo em formato de cabaça nos ensina que é possível conciliar segurança alimentar e autenticidade, desenvolvimento econômico e preservação cultural, reconhecimento oficial e autonomia dos produtores.
Para os 160 produtores do Vale do Jequitinhonha, a regulamentação representa o início de uma nova jornada. Os desafios continuarão existindo – adaptar instalações, implementar novas práticas, conquistar mercados exigentes – mas agora estes desafios podem ser enfrentados com a dignidade de quem trabalha dentro da legalidade e com o orgulho de quem vê seu ofício reconhecido como patrimônio cultural. As histórias de famílias como a de Renato e Adriana Rocha, que antes eram narrativas locais de resistência, agora podem transformar-se em exemplos inspiradores de empreendedorismo rural e preservação cultural.
O pequeno Queijo Cabacinha, moldado pacientemente à mão nas propriedades familiares do Vale do Jequitinhonha, carrega consigo muito mais que leite, técnica e tradição – ele transporta também esperança e possibilidades para uma das regiões historicamente mais desafiadas de Minas Gerais. Ao saborear este queijo, não estamos apenas degustando um produto gastronômico excepcional, mas participando de uma história coletiva de superação, valorização e pertencimento. Uma história que nos lembra que, por trás de cada alimento tradicional, existem pessoas, comunidades e culturas que merecem nosso respeito, apoio e, acima de tudo, reconhecimento.